7.7.08

Rio, 07 de julho de 1978.


Oi Mãe,

Faltam 2 dias para chegar o meu aniversário de 30 anos, a mesma idade que você tinha quando engravidou de mim. Na época e até muito tempo depois me lembro das pessoas dizerem que você me teve muito velha. Veja só... hoje me sinto tão nova ainda para viver o que uma mulher de 30 deveria viver.. casar, ter filhos, comandar uma família. Eu pensei que com 30 anos eu já tivesse a minha casa ou um apartamento legal com um terraço, onde pudesse ver as estrelas quando necessitasse respirar. Se eu tivesse esse apê, faria sem pensar uma reunião com todos os meus amigos da vida, desde a infância, se eu consegui-se achá-los, todos. Alguns ainda me são presentes, outros estão ao meu alcance, mas somos tão diferentes que perto desses me sinto um ET. Um amigo já perdi, assim como você, em um acidente de moto. Acompanhei a dor da sua mãe e é a pior dor do mundo. Penso muito na dor da Mimi quando você foi "levada pelos anjos". É claro que eu sofri muito, durante muito tempo perguntava por que você tinha me abandonado, até porque um dia me prometeu que nunca iria me deixar, depois de um filme em que o rapaz deficiente mental morria no final. Continuo sentindo a sua falta, mas não te culpo mais e sinto você cada vez mais perto de mim a cada dia que passa.

Durante muito tempo não consegui ver suas fotos, nem ler suas cartas, não queria saber de absolutamente nada que te lembrasse. Sempre que a Mimi vinha com histórias e fotos suas eu sentia um nó tão grande na garganta, uma vontade imensa de chorar eternamente, mas eu me segurava e chorava baixinho, no escuro do meu quarto.

A Tia Anita me cuidou muito bem e você sabia disso espertinha? Por isso pediu a ela que ficasse comigo se acontecesse alguma coisa contigo... Há pouco tempo atrás conheci meu tio Afonso e fiquei muito feliz por saber que na época meu pai queria ficar comigo, mas todos o convenceram que seria melhor eu ficar com a " galinha que cuida muito bem dos seus ovos.." lembra que falava assim da Tia Anita? Pois é... usei palmilha ortopédica e meus pés deixaram de ser tortos, usei aparelho e nunca mais fui chamada de "limpa trilho", estudei inglês, alemão e viajei para vários países, como você havia falado, tinha certeza que isso iria acontecer um dia.
Depois que se foi, minha vida se transformou totalmente, escovava os dentes toda hora, minhas cáries foram diminuindo, tinha que tomar leite e comer feijão todo santo dia. Fiquei até gordinha... pra Tia Anita eu sou magra hoje em dia.. até parece...

Depois que eu entrei na faculdade de jornalismo, me afastei muito da minha família, vim morar no Rio, morei em vários lugares até ficar no apartamento que você me deixou no Catete. Aliás, o que você e meu pai deixaram foram realmente a minha salvação da lavoura!!! Graças a vocês eu posso fazer teatro sem precisar pensar de forma radical em pagar minhas contas no final do mês... é claro que não dá para viver com essa grana para o resto da vida, ainda mais se realmente tiver filhos, mas já é um grande adianto e tenho esperança de que ganharei dinheiro produzindo meus projetos, ou se bobear abrindo um negócio próprio onde eu consiga fazer meu teatro sem precisar fazer trabalhos que não queira, só para ganhar dinheiro.
Antes do meu pai morrer, ele me perguntou para que eu iria prestar vestibular, eu disse na hora, como uma adolescente rebelde: "-Administração". Ele achou muito legal. Ele era um cara muito legal, sempre perguntava tudo de mim e adorava tudo que estivesse fazendo. Pena que eu não o consumi mais e isso é um grande arrependimento na minha vida atualmente.

Minha mãe... acabei sabe onde? Na Martins Penna, 3 anos após me formar e ir trabalhar com produção de tudo: rádio, tv, cinema... até entrar numa depressão ferrada, em que eu queria morrer, não conseguia nem sair da cama, nem parar de chorar. Então decidi, queria fazer teatro, que nem meus pais. Fiquei mais pobre, mas me tornei uma pessoa muito mais feliz!!!!
Um dia fui para Floripa fazer uma peça no TAC e fiquei alguns dias com a Rose. Lá ela me disse várias vezes como eu era parecida contigo e isso me impressionou. Por mais que eu não tenha vivido tanto tempo contigo, tinha os mesmo gostos e maneiras de me comportar e de me expressar. Comecei então a me sentir mais enraizada, menos patinho feio da família.

Um dia criei coragem e abri uma caixa com currículos, textos e fotos do meu pai que estava embaixo da minha cama. Foi quando comecei a descobrir aquele homem que era apenas um "esperma" na minha vida. Tive muito orgulho dele, por seus trabalhos e projeto de vida. Comecei a me sentir responsável pelo que poderia fazer da minha vida artística para continuar uma história que meu pai plantou. Não sei se terei condições de trabalhar com pessoas tão importantes do teatro brasileiro, como o grande Zé Celso ou o maravilhoso Flávio Rangel como meu pai teve o privilégio, mas uma coisa é certa, quero sempre trilhar meu caminho com muita dignidade para nunca manchar a continuidade do meu pai. Pode até ser besteira tudo isso, mas é isso que sinto e não vou me violentar. Já sofri muitas violências e agora não me presto mais a isso. Fico até hoje doída por você não ter acreditado em mim quando te contei sobre o merda do Alexandre ter me abusado e sempre ter me batido. Agora adulta, até compreendo por ver tantas mulheres por aí carentes e bobas, por insegurança tendo medo da solidão... mas não consigo entender como se deixou ficar tão cega com aquele vagabundo gordo que só ficava sentado na sala, comandando a casa, até garfo em você ele enfiava quando você queria me ajudar na comida! Porra!

Hoje estou às voltas, redescobrindo minha mãe e meu pai agora que inventei uma peça baseada em minhas memórias. Parece que foi um motivo criado para poder abrir as caixas das lembranças que estavam adormecidas, encaixotadas nas prateleiras empoeiradas. Ando descobrindo você, de carne e osso, agora você se humaniza para mim, agora se torna presente em minha vida, na minha casa, te levo para minha cama, sem mais tristezas, agora resta uma saudade de um tempo bonito que não volta mais. Talvez viva com meu filho o que você viveu comigo, mas morro de medo de deixá-lo só e pequeno no mundo e Deus me livre que ele se vá antes de mim!!!
A dor maior que tenho no momento é a falta do meu pai. Agora choro as lágrimas que não derramei na época da sua morte, agora choro a ausência daquele homem "doce" como a sua amiga Arminda falou. Sim! Liguei para Arminda, ela também sente muito a sua falta até hoje... Descubro agora um homem sensível, inteligente, bem humorado, que sabia como falar comigo, mesmo eu sendo criança, ele sempre soube falar da maneira mais inteligente que se fala com uma criança. No final das cartas ele sempre dizia "EU TE AMO". Em uma delas ele perguntava de você, ele sempre perguntava de você, dizia para eu ter paciência com a vida, que ela às vezes passava por fases difíceis e que ele um dia queria que ficássemos bem juntinhos! Mas esse tempo não existiu, na minha adolescência eu nunca fui visitá-lo e não me colocava muito pré disposta a recebê-lo aqui no Rio. Hoje em dia me dói até a alma a falta desse homem que é meu pai. Esse homem que fiquei sabendo que nem imaginava que você queria engravidar dele, sua maluca!!! Esse homem que me amava, que sempre mostrava minha foto para todos os amigos. Eu queria tanto encontrá-lo no bar da esquina para conversarmos sobre as coisas da vida... Li uma carta dele pra você em que ele escreve não acreditar que estava passando por uma fase sem trabalho depois de tanta coisa que já tinha feito. Aquilo me partiu o coração, essa carta ele te enviou pouco tempo antes de você morrer. Não sei como foi a vida dele depois disso, para mim ele estava sempre muito feliz.
Lendo seus textos hoje, me vejo naquelas palavras, me identifico com seus pensamentos, vejo suas fotos, Rony Rhomberg, a chacrete, a maneca, a loirinha,... e suas notinhas e matérias nos jornais e agora entendo melhor de mim, agora posso perceber de onde vem essas fases de desentendimento com o mundo, minhas pré depressões, ao mesmo tempo minha força, minha vontade de viver num mundo mais bonito.

De onde estiver, gostaria que soubesse do orgulho que tenho de você ser minha mãe e te agradecer por ter escolhido um homem tão maravilhoso para ser meu pai. Leve contigo aquele mesmo carinho que você fazia em mim, deslizando suas unhas pelos meus cabelos, que eu adorava e que ninguém nunca mais fez, até porque só você minha mãe poderia me fazer. Lembro agora do seu sorriso largo e sincero. Lembro da última vez que olhou para mim, se despedindo dessa que te trouxe alguma alegria e que te amava profundamente, tanto, mas tanto... eu pensei que nunca mais poderia viver sem você.
Na noite em que "os anjos levaram você para o céu" você se despediu de mim no sonho, não é? Me lembro até hoje, depois do dia 6 de agosto de 1987, minha vida nunca mais foi a mesma.

Minha mãe querida, te digo Adeus mais uma vez com o coração completamente despedaçado e com uma dor que nunca irá curar.
Um abraço bem forte
de uma eternidade,
De sua filha Camila

2 comentários:

  1. Muito bacana esse seu texto, Camila!

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  2. Camila, 30 anos e fazendo um balanço da vida? Li seu texto. Adorei. Descobri coisas que vc, em mais de 20 anos de amizade, não tinha me contado. E nunca tive coragem perguntar, porque achava que vc não queria conversar sobe o assunto. Enfim, o importante é que hoje é o seu aniversário e eu desejo toda a felicidade do mundo para vc.
    Amizade de 20 poucos anos, paixãozinha de infância, confidente, amiga para todas as horas, mães dos gatitos, atriz, jornalista, produtora, piloto de fusquinha, dona de uma gargalhada horrível e de olhos belíssimos. Dizer que te amo é bobagem, pois eu te amo pra caralho. Te adimiro. Te tenho no coração como uma irmã querida. Avoada. Relapsa. Quase chata e `as vezes inconveniente, mas encantadora.
    Agora vamos parar com essa rasgação de seda e tomar um chopp pra comemorar.

    Feliz aniversário. te amo. De seu eterno amigo.

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